Manifesto

DIA DO ESCULACHO POPULAR

Neste dia de sábado, 7 de abril, dia do médico legista, viemos homenagear com uma coroa de flores nossos camaradas tombados e combater o esquecimento. Por todos os documentos e depoimentos colhidos por familiares, sobreviventes e historiadores temos certeza da conivência e da participação direta de médicos e enfermeiros na prática de torturas. Inúmeras vezes estas práticas alcançavam limite da resistência física. Os médicos que, freqüentemente, forneceram laudos falsos, acobertaram sinais evidentes de tortura e também ocultaram a real causa da morte daqueles que foram assassinados. Ao apontar Harry Shibata e o que significa sua atuação na ditadura, queremos descobrir um pouco mais de como funciona o esquecimento.

De acordo com o Dossiê da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos políticos, apenas nos primeiros meses após o golpe militar 50.000 pessoas foram presas; 7.367 indiciados; 10.034 atingidos na fase de inquérito; 707 processos na Justiça Militar por crimes contra segurança nacional; 4 condenados à pena de morte; 130 banidos; 4.862 cassados; 6.592 militares atingidos; milhares de exilados; e milhares de camponeses assassinados. Chega-se a falar que o número total de pessoas torturadas é de 30.000 pessoas torturadas. E um total de pelo menos 426 mortos e desaparecidos políticos já foram denunciados e investigados há muitos anos.

Os motivos das mortes indicadas nos laudos necroscópicos, em sua maioria, coincidiam exatamente com a “versão oficial” dos acontecimentos. Tais como: “atropelamentos”, “suicídios”, “mortes em tiroteio”, na busca de ocultar qualquer evidência de tortura. Na maioria das vezes estes documentos são repudiados pelos depoimentos de vítimas sobreviventes que presenciaram as mortes, no interior dos órgãos de repressão, em conseqüência das torturas sofridas.

Os médicos-legistas, geralmente vinculados às Secretarias de Segurança Pública, participaram também na ocultação de cadáveres re-encaminhando os corpos para os cemitérios clandestinos. O objetivo desse comportamento era impedir, dificultar e desestimular que os familiares, ao encontrarem o corpo dos mortos, nas raras ocasiões em que encontravam, pudessem constatar as marcas das sevícias neles praticadas.

Nos processos no Projeto Brasil Nunca Mais pode-se perfeitamente identificar nomes de médicos-legistas responsáveis pela feitura de laudos para o acobertamento das mortes sob tortura. Além de Harry Shibata, eis alguns exemplos: em São Paulo Arnaldo Siqueira, Abeylard de Queiroz Orsini, Orlando José Bastos Brandão e Isaac Abramovitc; no Rio de Janeiro, Elias Freitas, Rubens Pedro Macuco Janini, Olympio Pereira da Silva; em Minas Gerais, Djezzar Gonçalves Leite; em Pernambuco, Ednaldo Paz de Vasconcelos.

Estes médicos, que utilizaram seus conhecimentos para esconder a violência do terrorismo de Estado, são exatamente uma das peças centrais da amnésia histórica. Não foram um ou dois monstros desumanos, foi uma estrutura institucional do Estado que funcionava como uma engenharia da mentira e do acobertamento. O esquecimento do extermínio faz parte do extermínio.

Trata-se simplesmente da domesticação da memória. As vozes do poder tentam dissimular o passado elegendo seletivamente porta-vozes revisionistas da geração, que nos pedem para “esquecer tudo que escreveram”. A imprensa marrom minimiza a ditadura como um episódio brando, reproduzindo a expressão “ditabranda”, citação direta do genocida chileno Augusto Pinochet em 1983.

Alguns se colocam como se fossem os exclusivos responsáveis pela conquista da democracia. Como se ela tivesse sido inteiramente conquistada e como se não a conquistássemos cada dia, como se a luta de classes desaparecesse pelo simples direito mínimo ao voto direto. E terminam por isolar o golpe como um acaso histórico. Mas sabemos que quando se isola a Ditadura militar e se fixa a mesma no passado longínquo, como algo que nunca voltará a acontecer, se acobertam as arbitrariedades continuam por parte dos agentes militarizados do Estado. Na verdade é como se os gritos daqueles mortos e desaparecidos voltassem a ser ouvidos. A tortura é uma prática institucional do Estado ainda hoje.

E a todo instante esquecemos que enquanto estamos aqui, alguma pessoa deve estar sendo torturada em alguma delegacia ou prisão no Brasil. Assim, buscamos mostrar que um levante contra a tortura do passado, só pode ser um levante contra tortura do presente.

Por outro lado, se aplica a teoria dos dois demônios. Como se os mortos e desaparecidos políticos fossem responsáveis por sua própria morte. Como se a guerrilha ou o direito de uso da violência contra um regime opressivo justificasse a tortura e a execução sumária. A Lei de Anistia cinicamente reproduz esta lógica perversa. Como se nós, por buscarmos justiça, fossemos revanchistas.

Existem atualmente processos de ação civil contra torturadores como Carlos Brilhante Ustra, Audir Maciel e outros que não se enquadram na área criminal, porque estão blindados juridicamente na Lei de Anistia. Existem processos movidos pelo Ministério Público Federal contra Paulo Maluf, Romeu Tuma e Harry Shibata mas estão travados na justiça. Outros processos têm sido apresentados pelos promotores levando em conta a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, .em dezembro de 2010,  condenou o Brasil  a investigar e punir todos os crimes da ditadura militar. Mas vigora a Lei da Anistia que configura um acordo entre carrascos que extorquiram uma falsa reconciliação. E esta Lei hoje protege com uma vergonhosa fortaleza de mentira jurídica estes criminosos de guerra, peças mestras do terrorismo militar de Estado durante a ditadura.

A Comissão da Verdade assim como os processos jurídicos são um combate necessário no campo da luta institucional para a exposição, apuração e punição dos agentes do Estado, militares e civis, dos médicos, dos empresários e da imprensa colaboradora do regime. Mas acreditamos que apenas com a auto-organização de situações e espaços de poder popular e de memória militante poderemos re-costurar as fraturas da memória social.

Propomos este ato no Dia do Médico Legista na esperança de que ainda podemos contribuir coletivamente para romper a engenharia do extermínio. Na certeza de que a verdade, a memória e a justiça também dependem das ruas e não apenas das reuniões nos palacetes de governo e acordos de cúpula. Para derrubar a interpretação da Lei de Anistia que protege os assassinos e torturadores temos que nos unir e nos organizar.

Sentimos a necessidade histórica de ir para as ruas buscar expor para o bairro, para os vizinhos, para a cidade, para a família, colegas e toda a população, em atos de memória militante, nosso passado fraturado. E assim aqui inauguramos a Frente de Esculacho Popular com a figura do famigerado Médico Legista da Ditadura, Harry Shibata.

Esculacho é um termo popular utilizado na maior parte das vezes para referir-se às ações de brutalidade cotidiana policial de que os agentes militarizados do Estado se utilizam, sobretudo contra a população pobre do Brasil.

Os Escraches Populares na Argentina e também as Funas Chilenas foram nossa inspiração. Em todos estes países foi necessária uma forte pressão popular para o julgamento e a punição dos militares genocidas. Por isso, cansados de tanto sermos esculachados impunemente, sentimos a necessidade de construir o Esculacho Popular, como uma forma de expor, lembrar e acusar os responsáveis pelos crimes da ditadura, homenageando nossos mortos e desaparecidos políticos, refletindo sobre o esquecimento e pressionando a sociedade e o Estado por justiça e pelo fim da impunidade.

Hoje, no Dia do Médico Legista, viemos visitar Harry Shibata, o Legista da Ditadura. Alerta cidadãos de São Paulo, este sujeito que passeia hoje no bairro de Pinheiros como um honrado cidadão, um bom velhinho, escrevia um “T” vermelho nos laudos daqueles que ele condenaria ao esquecimento, ao desaparecimento.

Harry Shibata ensinava aos policiais torturadores quais as partes do corpo onde deviam torturar e agredir de forma a não deixar marcas para o exame de corpo delito. Prática que é realizada até hoje por toda a polícia brasileira e também ensinada nas delegacias aos jovens torturadores.

Harry Shibata assinou o laudo falso em que Carlos Mariguela foi dado como morto em tiroteio, quando na verdade ele foi executado com diversos tiros, prática hoje comum nas periferias.

Harry Shibata é responsável pelo laudo falso do suicídio de Vladimir Herzog, forjado em uma foto hoje desmascarada. E pelo laudo de Sonia Maria de Moraes, que depois de brutalmente torturada, foi estuprada por um cassetete até que se dilacerassem seus órgãos internos e teve seus seios arrancados. Shibata assinou um laudo de morte em tiroteio. E poderíamos levantar ainda tantos e tantos outros casos.

Hoje estamos aqui também para interrogar, para buscar na mermória de nossos mortos e desaparecidos um sentido para a compreensão do horror. Porém, só conseguiremos isso interrogando não apenas a memória de suas mortes, mas também o sentido da luta destes camaradas.

Somos militantes da vida. Acreditamos que assim podemos interrogar e disputar o significado de juventude que queremos. Uma identidade combativa de juventude que representou esta geração, uma memória viva na militância. Esta identidade oculta de uma geração que buscava, muito além de uma democracia burguesa, uma perspectiva revolucionária anticapitalista.

Aqui estamos para um ato militante que reivindica uma memória combativa. Porque desejamos este sentido de juventude para nós, para os mais novos, para nossos filhos e netos. Porque não aceitamos mais apenas a caricatura do jovem alienado e consumista que nos impõe a indústria cultural. Queremos disputar aquele sentido militante que aprendemos. É este sentido de juventude combativa e irredutível em sua luta que queremos celebrar.

Lembramos como viveram e morreram para continuar lutando para que acabe a roda viva da desigualdade e da opressão contra os mais pobres. Sabemos que a impunidade dos torturadores é a correia de transmissão que sistematiza e intensifica a continuidade das práticas de brutalidade pela Polícia e pelo Exército no Brasil. Temos que reaver nossa história que foi seqüestrada e desaparecida junto com os corpos de nossos camaradas. Para isso temos que constituir um trabalho de identificação de sítios e lugares de memória da violência da repressão, uma geografia política da memória que exponha os responsáveis e que nos ajude a não esquecer onde e como se passaram estes crimes.

Estamos aqui não porque queremos revanche, mas porque queremos justiça! Porque sabemos que a verdade e a memória não se fazem sem a justiça.

Ainda que tenha oficialmente terminado a ditadura, as instituições brasileiras de maneira geral guardam incontáveis reminiscências da estrutura autoritária. Especialmente na sua polícia, nos seus métodos de violência, coerção e controle social, na tortura e nas execuções sumárias. Isso é um fruto direto da impunidade e do esquecimento.

Estamos aqui porque há polícia por toda parte e justiça em lugar nenhum. Os mesmos métodos da ditadura foram utilizados nos crimes de maio de 2006, na USP, na Cracolândia, no Pinheirinho, no Quilombo dos Macacos, contra os Guarani Kaiowá, em Sonho Real, em Eldorado dos Carajás, no Carandiru, nos assassinatos dos Sem Terra e com tantos militantes e jovens negros e pobres pelas periferias do país.

Assim, denunciamos que a repressão, a tortura, o extermínio seletivo não começaram e não terminaram com a ditadura militar. Permanecem como uma prática institucional, como instrumento da criminazação da pobreza, e no machismo, na homofobia, no racismo e na repressão política. Contra este avanço contínuo dos discursos e práticas neo-conservadores e proto-fascistas o horizonte anuncia tempos onde a unidade e a combatividade serão mais do que nunca necessárias. Onde grupos de diferentes tendências, partidos, agrupamentos e linhas políticas anticapitalistas devem se unir, para além dos diferentes matizes, para resistir às ofensivas da extrema direita. A Frente de Esculacho Popular se integra neste esforço e saúda todos os aliados.

Recentemente centena de oficiais da reserva assinaram um documento de insubordinação face ao governo que desautorizava o Ministro das Forças Armadas, Celso Amorim. Estes gorilas de pijamas se agitam, assustados por virem a ser convocados a falar ou punidos por seus crimes. Mas eles têm medo, porque agora já não sentimos medo. Não esquecemos os 426 mortos e desaparecidos políticos! Suas vozes seguirão soando porque para nós eles não morreram, permanecem presentes em nossa luta.

Exigimos que Harry Shibata seja intimado para depor na Comissão da Verdade, que seja julgado e punido por seus crimes! Justiça e Punição para todos responsáveis e co-responsáveis, civis e militares pelo extermínio na ditadura militar. Pelo fim da farsa da Lei da Anistia para torturadores.
Não esquecemos, não perdoamos, não reconciliamos!
Se não houver justiça, haverá esculacho popular!

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